quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008


FOME DE AMOR

Fernando Sabino

Quando um dos presos perguntava: “Mas afinal o que é que há com ele?”, logo surgia num sussurro a palavra terrível como uma condenação: “Mulher”. Alguém explicava que a namorada o abandonara, casando-se com outro. As circunstâncias em que se dera mais esse drama de amor, entretanto, e o local onde se realizaram os esponsais (na delegacia do 2º Distrito) não lhe inspiraram outra reação mais digna que tentar matar o rival à porta de um cinema – pelo que fora preso, depois de armar escândalo e levar uma boa surra.

– Tomaram a mulher dele e ainda bateram nele – informavam discretamente.

Com o tempo, começou a desaguar as mágoas no fluxo amargo das confidências. Fazia queixas patéticas: tratava-se de uma ingrata, malvada, perversa, sem coração.

– Em suma: uma grandessíssima vaca.

Depois sua revolta foi-se abrandando, com a lembrança de outros tempo mais felizes. Tornava-se meigo e lírico. Contou como se amavam e, num processo retrospectivo de recordações, ia-se afastando da traição sofrida, enquanto recompunha seus frustrados sonhos. Neles, a namorada se submetia a uma gradativa evolução de metáforas pela qual, de vaca que era antes, chegou a ser lírio, depois de ter sido sucessivamente estátua, crepúsculo, árvore e passarinho.

Para a indiferença mal disfarçada dos companheiros de prisão, narrava agora como fora o primeiro encontro:

– Foi de tarde. Uma tarde muito clara, o mar muito verde. Ela vinha vindo ao longo da praia, com um vestido leve, todo branco, os braços nus... Tinha os cabelos escorridos como de quem acabou de sair do banho. Sua pele era um pouco queimada de sol, mas não chegava a ser bronzeada, era assim de uma cor meio dourada, assim como a de um franguinho assado...

– Desses bem novinhos? – perguntou um dos ouvintes, já vivamente interessado.

– É isso mesmo – continuou ele, se entusiasmando: - Bem novinho, de espeto, e ainda com um resto de gordura. A pele bem esticada, muito fina, quase estalando.

– E o peito – acrescentou outro: - Bem cheio, recheado, com aquela carne muito branca.

– Perto da coxa, aquela parte mais torradinha...

Começaram a destrinchar o frango, famélicos, disputando cada um seu pedaço:

– A coxa. Eu gosto mais da coxa.

–A coxa é minha.

– E a asa – sugeriu um deles, olhar brilhante: - Vocês estão esquecendo a asa, pessoal: a gente puxa e ela desgarra, arrancando uns fiapos... É a melhor parte.

– É verdade, esquecemos a asa – continuava o rapaz, já esquecido de sua amada e apaixonado pelo frango: - A asa e o pescoço. O pescoço é uma parte que eu prefiro. Depois de arrancar a carne com os dentes a gente vai chupando os ossinhos um por um.

– Recheado com farofa, você disse.

– Com farofa e azeitona – arrematou outro, já de olho mole – De vez em quando a gente encontra uma azeitona sem caroço.

– Um frango assado dá trabalho para comer, mas como é bom! – concordaram todos já saciados.

O autor da feliz imagem, porém, quis ainda comer mais um pouco:

– Sempre sobra um pedaço de pele, bem torrada, daquela pelezinha de galeto muito tenra, meio arrepiada, que até parece pele de moça depois do banho.

De repente caiu em si, mas era tarde: a imaginação esfaimada já remexia no interior da namorada, fisgando aqui e ali os seus despojos, para descobrir finalmente a parte melhor:

– O coração! – exclamou. – Esquecemos o coração.

E numa boa dentada comeu para terminar o coraçãozinho do frango, que vinha a ser o da moça assim desamada, bem amargo este, e duro, com a dureza das ingratidões.

(In: A Companheira de viagem)



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