segunda-feira, 10 de março de 2008

Re-viver

A Fúria da Beleza
Elisa Lucinda


Alguém me perguntou alguma coisa?

Uma hora a gente joga, outra hora é a vez da vida jogar. É assim sempre. Mas, às vezes, a gente quer forçar a barra da vida, impor a ela nosso desejo, enquadrá-la à nossa pressa, determinar o seu tempo, ditar sozinho a ordem das cenas do grande roteiro. Acontece que a vida também é rio, é mar; está sujeita às correntezas, às luas, às tempestades, aos sóis, aos desígnios do vento e nos põe diante da sua verdade incontestável: ela flui. E nos cabe respeitar sua fluência. Por vezes é difícil aceitá-la. Então a literatura vem e ensaia a gente: quando esse livro começou a nascer, seu embrião tinha outro nome, Caderno abóbora. Pretendia esse ser um livro ensolarado, explodido de cores, matizes, com poemas nascidos de um caderninho laranja que tive, donde só saia poema bom. Organizei-o nessa viagem, cuja estrutura se concentrava na variação desse tema cor. Como um fruto que amadurece e passa do seu tempo de colheita, esse Caderno abóbora caiu na relva. Ficou lá, exposto às chuvas, às secas, invernos, geadas, verões intermitentes e às minhas mudanças. Enquanto isso, saiam da mesma árvore e na frente, livros para criança. O fruto ao cair partiu-se e partindo retornou ao seu estado de semente, se misturando de novo à velha terra. Silêncio sobre esse nome.

Enquanto isso a fábrica de poema trabalhava dia e noite sem parar e, quando pude me dedicar ao velho livro, cinco anos depois de sua idéia original, ele já era outro. É certo que não deixou de ser um livro de tons na sua ossadura onírica de cronos e cromos. Havia um espanto além das cores e havia também outros cadernos cheios de outros poemas que falavam ao meu coração, além daquele caderninho fértil. Aos poucos A fúria da beleza, mero nome de poema, foi virando o nome de um capítulo do livro. Dei uma saidinha e quando voltei ele já era o nome do livro e tinha tomado o poder. Caminhava desenvolto no escritório, nos banheiros, na sala, no quarto, na cozinha e me induzia, com força e doçura, a subjugar tudo a seu gosto e capricho.

Fui falar com o Conceito. Estava de costas pra mim, refestelado em sua cadeira, em seu trono de eixo. - Conceito, eu estive pensando...
Pois antes que eu acabasse de falar, ele gira veloz na cadeira de diretor, fica de frente pra mim e sua face já era outra. Era a face da Fúria da beleza.

Tarde demais, o nome já tinha já tinha tomado o conceito.


E do livro:


De Elisa Lucinda
Tatame

Cá estou para uma guerra inesperada
e dificil: lutar contra o meu amor,
o amor que eu sinto.
Puta que pariu!
Civil, despreparada
e desprovida de armas, pareço perder
de cara a empreitada.
Levanto da primeira derrubada
e o bicho já me golpeia certo no
diapasão; justamente o afinador dos fracos,
a bússola sonora
dos instrumentos de canção.
Me emudece, me desafina
ceifa rente meu braço de poema, e,
manca dele, procuro ainda alguma proteção.
Mais um golpe, estou no chão.
O amor caçoa então: quer morrer, danada, não vai lutar não?
Com o bico da chuteira da mágoa
desfiro-lhe dois golpes seguidos no queixo.
O amor ri: não doeu, nem senti!
Irada, engancho minhas pernas em seu
pescoço, tento as tesouras imobilizantes
que copiei das lutas da televisão.
(Que nunca gostei, será que prestei a devida atenção?)
O amor interpreta mal...
Ah, quer me seduzir? Enforcar, que é bom, não?
Eu nada falava, torcia pernas, me esgotava,
fremindo-lhe a cabeça entre as coxas.
Isto pra mim é trepada, boba!
Eu gosto do aperto, do cheiro da roxa
e de te ver roxa.
E gargalhava.
Cansada, humilhada e sem
munição, desmaio e me entrego:
pode me matar, amor
eu estou na sua mão.
O amor me olha de cima então:
querida minha, eis o segredo da esfinge
eis o problema diante da solução:
matar-te é matar-me
e matar-me é matar-te.


Se no chão do amor estava,
nesse chão continuei então.
Deitada sob o amor,
debaixo do amor,
no ringue do amor,
o amor me beijou,
me beijou, me beijou.

9 de Abril de 2005

Fonte: www.escolalucinda.com.br

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